Programas Policialescos e a palhaçada na hora do almoço

*Vinicius Dias

A repórter Mirele Cunha debocha de um suspeito

A repórter Mirele Cunha debocha de um suspeito

O clima de final de ano traz consigo desejos de mudanças. Alavancado pela passagem do Natal, é hora de se pensar nas promessas não cumpridas, no desejo de parar de fumar, de trair a mulher, de bater na filha e de seguir uma religião. Acho super bacana, pois este sentimento quase generalizado é quase sempre – pelo menos nas pessoas mais próximas a mim – focando uma melhora, uma positividade bacana, que geralmente dura até fevereiro, março. E nessa altura a gente emenda com o carnaval, cai na folia e esquece um pouco desta realidade dura, que está sempre nos desafiando – a nós mesmos – se o que desejamos é o que queremos de verdade.

Eu to nessa também. E apesar de todas as notícias de 2015, que o ano foi uma merda, a crise, a safadeza política e toda picaretagem, o ano foi bom pra mim. Uma das maiores vitórias que tive foi ter entrado na minha casa própria. Eu e a nega ainda ficamos olhando pro teto sem acreditar – após 6 meses do feito – Obrigado Tio Lula e Tia Dilma! Haha, os coxinhas pira! 🙂

Assim eu não quero me prometer nada, muito menos aos outros. Mas eu queria pedir. E já que as promessas todo mundo esquece mesmo – lembre-se: elas duram até… no máximo março – os pedidos também serão esquecidos e negligenciados. Uso este parâmetro como base já que muitos políticos que nos sacanearam continuam aí no congresso sem que o povão lembre de seus feitos diabólicos. Então lá vai o meu pedido:

Que Papai Noel acabasse com todos os programas policialescos da TV brasileira a partir de 2016. Na verdade, este pedido não tem nada de particular, afinal, eu quase não vejo estes programas. Peço isso porque acho uma tremenda sacanagem esses apresentadores ganharem dinheiro com o sofrimento alheio, rindo escrachadamente do povão, que acaba rindo junto. Acho triste! Mais triste até do que olhar pro congresso! Porque é uma autorização dada àquele lixo debochado entrar nas nossas casas e sambar sorridente falando de pessoas com características muito próximas às nossas. Desproporcional a isso é o perfil destes apresentadores, em sua maioria homens brancos, bem vestidos e ricos. Encarnam o meio termo entre o jornalista e o animador de auditório paspalhão.

Jornalista engraçado

Tremenda sacanagem pois estes caras formam opinião de quem não teve tempo suficiente para frequentar escolas e formar uma opinião crítica. De uma maneira que ao que falta opiniões diversas e pontos de vistas contrários, ou mesmo uma reportagem mais aprofundada, a este resta concordar, se sentir desamparado, e ver no perfil das pessoas que estão próximas de si – inclusive seus familiares – possíveis destinatários de uma delinquência inata. Não para por aí o crime. A Andi fez um levantamento das principais violações de direitos destes programas. Tem de tudo, entre eles: 1. Desrespeito à presunção de inocência; 2. Incitação ao crime e à violência; 3. Incitação à desobediência às leis ou às decisões judiciárias; 4. Exposição indevida de pessoa(s); 5. Exposição indevida de família(s); 6. Discurso de ódio e Preconceito de raça, cor, etnia, religião, condição socioeconômica, orientação sexual ou procedência nacional; 7. Identificação de adolescentes em conflito com a lei; 8. Violação do direito ao silêncio; 9. Tortura psicológica e tratamento desumano ou degradante. (Andi, 2015).

Programa policial

O conteúdo geralmente é local, mas o plano de “Deseducação” dos mais humildes é nacional e orquestrado. Os programas têm perfil parecido, com apresentadores devidamente treinados a seguirem a linha editorial sangrenta. Na maioria dos programas tem-se também algumas destas mulheres gostosonas que incentivam a idiotice destes apresentadores/animadores com pitadas de cometários machistas, racistas, misóginos. O termo “deseducação” me lembrou o CD maravilhoso de Lauryn Hill “The miseducation of Lauryn Hill”, porém, diferentemente do trabalho sonoro da rapper negra, estes programas trabalham com uma sonoridade nada harmônica. Em sua maioria tem um sonoplasta irritante que solta gargalhadas estravagantes, rugidos de animais, explosões. Nada melódico!

Apesar de ser uma linha editorial sem pesquisa e aprimoramentos, com o tempo estes programas se aperfeiçoam e se direcionam aos níveis mais rudimentares do ser humano: violência, sadismo, ataques de fúria, exploração do preconceito e tudo o mais que o ouvinte passivo se identifique de algum modo. Digo isso porque toda a destruição intelectual destes programas não são o bastante para, em algum momento, o espectador se atentar que poderia desligar a televisão e ver algo mais informativo ou pacífico. Não! Os policialescos deixam gosto de “quero mais”. E no outro dia… tem mais. Menos informação e mais fofoca.

Um artigo maravilhoso da Carta Capital, escrito por Bia Barbosa traz valiosas contribuições para entendermos a complexidade destes programas, o artigo fala de algumas cenas emblemáticas como a da TV Cidade, no Ceará que transmitiu por cerca de 20 minutos cenas de uma menina sendo estuprada.

A combinação editorial é maldosamente pensada: o desamparo social, a falta de opções, o horário de almoço – tempo de relaxamento da maioria dos trabalhadores comuns – , a combinação de um perfil “jornalista sério” fazendo palhaçadas. Parece tudo muito engraçado e despretensioso, mas vai de encontro a dados da segurança pública que remetem a uma criminalização da pobreza, em especial da juventude negra, ao intenso encarceramento, ao estímulo da violência policial e a uma série de quebras dos direitos humanos de maneira geral.

Triste é perceber no dia a dia os ouvintes destes programas querendo interagir. Querem mostrar que estão informados e vem reverberar tudo que ouviram mais cedo: – Você viu a menina que foi esquartejada? – Você soube do pai que comeu a filha? – Você ouviu falar da cigana que rouba crianças? – A cidade está muito perigosa, tem que prender estes marginais!

Ok, ok. Me lembra carnaval, e me lembra também que toda sociedade tem seus meios de sair da realidade, e que, por aqui, a realidade está tão dura, que precisamos “dessensibilizar” os corações. Talvez petrificando, talvez com uma nova alegoria. O nosso carnaval se antecipa, e faz esquecer todas as nossas promessas de sermos melhores, de parar de fumar, de tratar com mais carinho nossos filhos.

Os versos de Renan Inquérito me dão o alívio esperançoso a prosseguir na luta:

Cansei de telejornal, de sangue, carne espirrando
Pensei em fazer uns versos vegetarianos
Falei com Deus, meu nutricionista espiritual
Que disse pra eu evitar de me alimentar do mal
Mas se a gente é o que come
E quem não come nada, some
Por isso ninguém enxerga essa gente que passa fome
Eu fiz meu rap virar cereal cerebral matinal
Pros moleque não morrer de desnutrição mental
Trocar os programa enlatado, lotado de conservantes
Por um instante, um Ni Brisant, conservantes
Vim pra impregnar, rá! Tipo cheiro de Cheetos
E atravessar gerações, que nem os Beatles
Só vou desistir, abortar minha missão
Quando a educação aqui virar ostentação
[Renan Inquérito em Versos Vegetarianos]

 

*Vinicius Dias é psicólogo, poeta e só assiste esses programas quando está de passagem na casa de alguém no horário do almoço.