Beyoncé e a pretinha abusada

Que preta metida, né? Acha que pode representar pretos elegantes, ricos e poderosos

beyonce

Beyoncé em “Black is King” – a “estampa de oncinha” incomodou muita gente

*Joceline Gomes

Mas que preta abusada essa Beyoncé, né? Apresentar um elenco 100% preto e nenhum deles é pobre ou vítima de qualquer tipo de racismo… Sim, tô sendo irônica, e vocês sabem do que eu tô falando. Uma acadêmica branca muito popular, escritora de livros sobre escravidão e que assinou um manifesto contra as cotas raciais mas se diz antirracista (eu não tô brincando!) escreveu um artigo onde criticou o uso de “estampa de oncinha” e o “glamour” de Beyoncé em Black is King. A última frase do artigo dessa “grande aliada” do movimento negro é: “Quem sabe seja hora de Beyoncé sair um pouco de sua sala de jantar e deixar a história começar outra vez, em outro sentido”.

Nessa obra-prima chamada Black is King, Beyoncé retratou grandeza, opulência, ancestralidade, matriarcado, equilíbrio masculino e feminino, relação com a natureza, protagonismo das mulheres, afrocentricidade, afrofuturismo… foram tantas referências que não param de surgir threads e posts a respeito. Mas a branca tá incomodada em ver tanta riqueza, afinal, preto de verdade é miserável, principalmente em África, principalmente pra ela, que ganha dinheiro escrevendo sobre escravidão.

Pra quem está estranhando esse “Poder Preto” exaltado em Black is King, saiba que era exatamente assim a África pré-colonial. Nosso povo sempre foi abundante. Kemet (o nome original do “Egito”, que significa “terra preta/do povo preto”) foi um império poderoso por 3 mil anos. Três mil anos de muito poder, ouro, e de muita evolução científica e tecnológica. Não existia miséria nem fome. Sabe quem criou essa sociedade desigual? Eles mesmos, os brancos europeus colonizadores, que destruíram todos os registros de como as pirâmides foram feitas e dizem que foram alienígenas. Que roubaram nossa filosofia, matemática, engenharia e nos chamam de primitivos. Que escravizaram nosso povo nos obrigando esquecer nosso próprio nome e espiritualidade. Que colonizaram nossos territórios e nos incentivaram a brigar entre nós. Se a desigualdade existe e se África hoje não reflete mais essa riqueza e opulência que Beyoncé ousou mostrar, a culpa não é dela.

Afrofuturismo é sobre nossa ancestralidade nos guiar rumo a um futuro de prosperidade e protagonismo. Assim como foi nosso passado. Como diz Katiuscia Ribeiro: o futuro é ancestral. Eu não tenho nenhuma crítica a esse trabalho de Beyoncé. Eu chorei que nem criança as duas vezes que assisti ao filme inteiro. Eu não tive referências positivas de mulheres negras na minha infância. Só empregadas, escravas, miseráveis, barraqueiras, analfabetas, “feias”. No filme, existem pessoas pretas de todos os tipos: gordas, magras, altas, baixas, velhas, jovens, crianças, carecas, de peruca, black, tranças e penteados de todas as formas. E todas exaltadas em sua beleza e poder. Uma frase que me chamou muito a atenção foi: “Não se usa uma coroa de cabeça baixa. Não posso acreditar em Deus e ser sua filha sem me considerar uma deusa. Isso não faria sentido. Estudei a minha história. Sou uma criadora de tudo”. Saber que as próximas gerações poderão ter esse tipo de referência me enche os olhos de lágrimas e o coração de esperança. E uma pessoa branca NUNCA vai compreender a profundidade disso. Eu vou assistir Black is King mil vezes. E as mil vezes vou me emocionar.

Como disse Anin Urasse: se a gente não conhece a profundidade do símbolo, não conhece a profundidade da ofensa. E agora que conheço os dois, não consigo mais “dialogar” com Lilia Moritz Schwarcz. Saibam: eu também a li, tenho dois livros dela sobre escravidão. Sim, ela ganha dinheiro falando sobre a escravidão do nosso povo e assinou o manifesto anti-cotas. Sim, ela disse que Beyoncé não podia ter falado sobre a própria ancestralidade da forma que falou. Me falta adjetivos pra falar sobre o tamanho dessa audácia. Tão grande quanto a ofensa. Mas eu acho que ainda maior é a decepção de ver tanta gente preta comentando lá no post de “desculpas” (que sempre tem): “isso aí, muito importante reconhecer o erro, parabéns”. Branco ganha parabéns até quando erra… Parafraseando Flávio Antiéticos: branco é desconstruível, preto é imperdoável. Até pelos próprios pretos.

Não tenho que e não vou dialogar ou perdoar Schwarcz. Ela não é referência de nada pra mim. Minha referência são os meus e o que eles me acrescentam diariamente. A jornada pra me aceitar e me compreender dessa forma foi muito extensa pra eu chegar agora e dizer que uma branca falar assim de uma obra feita por uma mulher negra é permitido. Pra mim não é. Nos tiraram nossa dignidade muitas vezes, mas a deles não pode ser arranhada. Não podemos “cancelá-los” enquanto eles podem tudo, até nos matar, física e simbolicamente por séculos. Enfim, não consigo mais ter essa postura harmonizante, galera. Talvez eu seja “radical demais”. Mas é o único jeito que consigo viver agora. E pra mim não tem mais volta.

BLACK IS KING! Como diria Tati Quebra Barraco: quem gostou, bate palma. Quem não gostou, paciência. Vai lá e tenta fazer melhor (e falhe miseravelmente).

 

*Joceline Gomes é uma mulher preta africana em diáspora que, quando criança, colocava toalha na cabeça pra fingir que o cabelo era liso e balançava. Assistindo Black is King, sempre chora de não conseguir respirar depois de ver Brown Skin Girl.

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