A vida da minha boneca

Hoje sou a mulher que só minhas bonecas conseguiriam ser

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Eu e a boneca Nichelle – minha primeira boneca negra

*Joceline Gomes

Quando eu era criança brincava muito de boneca. Brinquei até uns 14 anos. Mas minhas brincadeiras tinham roteiro, dividido por dia, que nem gravação de filme. Elas tinham nome, sobrenome, personalidade, cor favorita, música tema, só não tinham signo porque eu não tinha (e ainda não tenho) conhecimento suficiente a respeito. Mas todas tinham algo em comum: a idade. Eram todas adultas e bem sucedidas, estudavam, trabalhavam, dirigiam, moravam sozinhas – aos 16. Na minha cabeça, essa era a idade onde as coisas aconteciam. A mãe delas tinha 30. Hoje tenho 32. Comecei a trabalhar aos 16, ano em que entrei na faculdade. Essa ficha só caiu agora.

Quando as pessoas dizem que criamos nossa própria realidade acho que é a isso que se referem. Essa nossa capacidade de enviar uma energia pro universo, e ele nos devolver na mesma intensidade. Hoje vivo a vida que minhas bonecas tinham (e que eu sonhava). Sou jornalista, dançarina, professora de dança, atriz e modelo. Minha primeira boneca negra, a Nichelle, era tudo isso. Hoje sou a mulher que eu achava que só minhas bonecas conseguiriam ser. Mesmo não me reconhecendo negra ainda e não tendo nenhuma referência positiva na TV, eu tive uma referência fundamental bem pertinho de mim, nas minhas mãos.

Minha mãe me teve aos 40 anos. Não tenho filhos, mas todos os meus projetos são gestados e nutridos como se o fossem. Tenho um carinho enorme por cada pessoa que entra na minha sala de aula. Isso me remete a uma postura de matriarca, algo que minha mãe é, e que eu espero ser pelo menos na metade da intensidade que ela é. Matriarcas não são apenas aquelas que possuem filhos biológicos ou adotivos. Elas geram e nutrem uma comunidade, local, nacional ou mesmo internacional. Sabe aquela tia que não tem filhos mas criou você e toda a galera da sua rua; aquela irmã mais velha que criou todos os irmãos e agora é a referência dos sobrinhos; aquela mulher que realiza há anos um projeto social que resgata a autoestima da juventude negra, periférica, e que já profissionalizou e salvou a vida de pelo menos três gerações… todas essas mulheres são matriarcas, e elas podem não ter filhos que saíram de dentro delas, mas foram elas que geraram e nutriram os sonhos que alimentaram essas pessoas. Esse é um assunto que me encanta e que falo em qualquer oportunidade que tenho, vocês já devem ter percebido.

O que quero dizer com esse texto é: não desprezem as brincadeiras infantis. Elas ensinam muito às crianças, nos ajudam a colocar sonhos em perspectiva, nos ajudam a roteirizar uma possível vida adulta. Sou grata por escrever roteiros naquela época porque isso me ajudou a ser criativa e me ensinou a escrever histórias. Sou muito grata aos meus pais terem me estimulado a brincar, a estudar, a ser quem eu queria ser em todos os momentos da minha vida. Sou o que sou porque eles me deixaram ser. E você, tem prestado atenção às brincadeiras das crianças a sua volta? Brinque junto. Quem sabe não é você a inspiração que aquela criança precisa? Afinal, sonho que se sonha junto é realidade. Ainda que só por um tempo. Ainda que só na brincadeira.

 

*Joceline Gomes é jornalista e dançarina (ao mesmo tempo). Ainda tem a boneca Nichelle em seu quarto pra lembrar sempre de onde veio e que sonhos se realizam.

**Texto originalmente publicado na coluna Negrintensidade, no perfil Afrontasia no Instagram.

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