*Vinicius Dias
Black Is King de Beyoncé mostra a realeza do povo negro. A direção do filme-álbum é digna de um filme que fala sobre a majestosa caminhada do povo negro em África e na diáspora. Junto com Beyoncé dirige a obra de arte: Blitz the Ambassador, Jake Nava, Jenn Nkiru e a própria Beyoncé, mais conhecida como Rainha da porra toda.
Parece que tudo ali foi pensado milimetricamente. A começar pelo dia que o vídeo saiu, o dia da mulher africana. Tecidos e cortes de alta costura, maquiagem, jóias, referências tradicionais (aos montes), tons que nos remetem aos Orixás, Sacerdócio, Maternidade, Afrofuturismo. Esses são alguns dos tópicos que poderiam dar um texto cada um, mas eu gostaria de me ater a um tema em particular: Masculinidade Negra.
O título traduzido ficaria “Preto é Rei”. Eu fico pensando do porquê não ter sido “Preto é Rainha”, ou algo do tipo, que exaltasse o poder feminino, tão falado por Beyoncé em suas letras e posturas. Black Is King também caberia em uma tradução referente ao povo preto como rei. A resposta viria mais à frente. Beyoncé fala sobre masculinidades negras! E coloca homens e mulheres negras lado a lado em posturas dignas do povo que tudo criou neste mundo terreno. Beyoncé não é “mais ou menos” com a produção imagética do masculino na obra. Ao mesmo tempo eu fico pensando o quanto ainda preciso descolonizar minha mente ao pensar a dicotomia masculino X feminino, tão em voga no mundo ocidental, com ares de disputa acirrada e binária. Talvez isso sirva bem para homens e mulheres brancos, mas a essência do povo negro é o trabalho em conjunto, sem uma ordem agressiva de hierarquia. Até porque, em muitas linhagens africanas, a Mulher ocupa um lugar de destaque na estrutura hierárquica – e Bey não se furta de mostrar isso também. Descolonizar os imaginários é também pensar formas outras em nossas relações de homens e mulheres. Neste sentido trazer as instâncias masculinas e femininas como constituinte dos seres humanos nos ajudam a sair do jugo patriarcal ocidental e branco. A construção imagética dos Orixás podem nos ajudar neste exercício. Diversos Itans (histórias) dos Orixás colocam Orixás femininos e masculinos desenvolvendo dinâmicas fora de uma construção violenta, hierárquica, binária e muito menos heteronormativa. Em nenhum momento hierarquias de poder são narradas em detrimento do masculino. Em muitos momentos energias femininas adquirem protagonismo na dinâmica relacional, e vice-versa. O professor Wanderson Flor do Nascimento na live “pluriperspectivas e masculinidades (Canal Pluriversidades no youtube, em 30/07/2020) diz que a categoria “homem negro” surge por via do capitalismo, em uma instauração no ocidente, o capitalismo e a relação com o trabalho desumanizado por via do escravismo, onde corpos negros masculinos terão sua força de trabalho usadas até a exaustão, inclusive podendo ser animalizado e morto. Black Is King não é sobre isso!!
Para nós, homens negros brasileiros, é difícil se colocar em um lugar de honrarias. A afirmação de Beyoncé, de que Preto é Rei, pode ser assumida por nós, mas geralmente com muito trabalho anterior, muita luta interna. As imagens que consumimos em nossa formação são imagens degenerativas, agressivas e começamos a entender que somos homens menores (comparado ao homem e à mulher branca), propensos à violência, ao vício e à não formação de uma família sólida. As imagens de violência perpetradas pela mídia contribuem e muito para isso. Desde que esta minha geração nasceu (hoje tenho 41 anos), também consumimos muitos valores brancos, entramos em disputas que originariamente não eram nossas, enfim, vamos nos perdendo no caminho. Se entender um homem negro na diáspora é entender que participamos de lógicas brasileiras que não nos potencializam. Pelo contrário, nos enfraquecem, e nos matam de várias formas. Não podemos encarar o encarceramento em massa de homens negros, os assassinatos, linchamentos, desmoralizações e olhares negativos como se tudo isso fosse uma maldita coincidência e não tomarmos um posicionamento combativo a isso tudo.
Beyonce em momento algum fala de pessoas brancas, da branquitude ou algo assim. Beyoncé fala de reinados e poderes do Povo Negro, e só. Me parece mais um recado aí na obra desta Rainha co o que realmente deve importar, a tal da agenda.
Ultimamente as redes sociais têm provocado o povo negro a se colocar, pra emitir opiniões e combater racistas. Nesta onda surgem pessoas antirracistas de uma hora pra outra, tocadas pelo tempo emergencial das redes, e a pauta racial “pulsa” em seus posicionamentos. Poucas críticas e autocríticas são feitas ao lugar que essas pessoas ocupam, a estrutura sócio-racial muito menos. Estamos a falar de gente que elege o elenco de um filme, que tem editora, cargos políticos do alto escalão, escrevem em colunas de revistas famosas, tem podcasts patrocinados, tudo sob a alcunha de progressistas. Particularmente acho importante tudo isso, mas às vezes fico refletindo se a energia para o fortalecimento de nosso povo está na mesma proporção do combate aos racistas. E se não estamos esperando muita coisa de quem se diz antirracista mas continua não contribuindo em nada para o abalo de estruturas racistas e históricas do Brasil. Ao olhar mais de perto pra vida dessas pessoas, seus filhos andam com segurança e frequentam escolas caras da cidade. A estrutura continua, entende? É difícil fazer uma espécie de proporcionalidade diante do que seria mais importante, e sei que nossa luta é plural, mas fico olhando “Black Is King” e sonhando com o dia em que a altivez será encarnada em nossos espíritos, em nosso andar, falar, comer… porque é da realeza que viemos. Em determinado momento da obra, uma voz diz: “Não há coroas para cabeças que se abaixam”. Sabemos o quanto foram colocadas as cabeças baixas e mãos pra trás dos homens negros. Trabalhei no sistema socioeducativo e fiz visitas a cadeias, a dominação corporal através de códigos de controle, filas, mão pra trás é imperativa. Beyoncé dá um forte recado pra nós, outros códigos corporais através da narrativa audiovisual, faz nos lembrar de manter a cabeça ereta em respeito a cada ancestral que passou por esta terra. O mito da democracia racial confundiu tanto a psique negra brasileira que a gente tem dificuldade de ler corpos pretos como abalados pela escravidão, mas conseguimos normalizar corpos brancos como modelos de um ideal a ser alcançado.
As imagens de crianças africanas subnutridas tão disseminadas por ONGs que solicitam ajuda ao continente são desprovidas de uma crítica. Uma crítica que deveria perpassar pelo papel nefasto que teve o colonialismo e que, ainda hoje, produz opressões e ajuda a conquista do doutorado do voluntariado ao mesmo tempo. Um movimento que coloca pessoas brancas – novamente – como os bonzinhos da história. Tem-se uma história de aniquilamento e perversidade com o povo negro, e nesta história não é o povo negro que é o algoz. Isso precisa ser dito. Lembro de uma série de escritos que o Professor Henrique Restier escreveu no site Justificando, onde fechou com um texto de título “Por que tenho orgulho de ser um homem negro?”. Naquele momento eu me perguntei quais eram meus exemplos, meus ídolos, e fiquei triste em perceber que meu imaginário ainda tinha resquícios de imagens brancas como heróis. Ali eu tive um click na cabeça. Faço questão de citar literalmente uma parte do texto de Restier, uma referência nos estudos brasileiros sobre masculinidades negras:
(…) o patriarcado branco não foi “inventado” para contemplar homens negros, indígenas, ou os “não-brancos” em geral, mas sim para nossa domesticação e ruína. Como lidamos com isso e que sugestões apresentar, é uma parte importante do que proponho neste texto.”
O trecho acima parece estar alinhado com a obra de Beyoncé. Assim como a obra do mestre Roberto Ribeiro, “Todo menino é um rei”, em que o sambista “navega pelo mar da ilusão” e desperta um dia, entendendo que ele já foi um Rei. Gostaria de, com toda a humildade que cabe em mim, discordar um pouco do Mestre: o Senhor continua sendo um Rei ancestral. Pois assim deve ser a postura de homens negros vivos hoje: reverenciando a caminhada de quem veio antes. Em uma música que coloca meninos como Reis, o valor devido a esta afirmação deve ser exaltado, relembrado e tomado por nós. A mensagem deve ser levada “aos irmãozinhos que não estão bem”, como Thiago El Niño lembra na música Filhos do Sol. Uma mensagem de futuro, de um afrofuturo, que como bem lembrou o Antropólogo Paíque Santarém em uma roda de conversas de homens negros de Brasília: o afrofuturo tem a ver com vida, porque, pra se pensar em futuro, é necessário estar vivo.
Black Is King parece este chamado à população negra do mundo: ficar vivo. Se ver como fruto ancestral de um povo que vive em harmonia com a natureza, respeitando mulheres, crianças e idosos. Tomar posse da herança de reinados magnânimos. Para isso, precisaremos retornar pra casa. Dar mais atenção para aquilo que nossas mais velhas falam. Nossas mães já falaram que a rua é um lugar perigoso. “Coincidentemente” a maior parte da população de rua no Brasil é negra…mas isso é papo pra outro texto.
Black Is King parece um chamamento de uma mulher negra que se entendeu Rainha para homens negros se comportarem como Reis. Está declarado. Cabe a cada um de nós se comportar como tal. Orixás, Inkises e Voduns nos dão as pistas de comportamento alinhado a nossa herança de magnitude ancestral em harmonia com o contexto.
*Vinicius Dias é psicólogo clínico e membro da Roda de Conversa de Homens Negros de Brasília